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CAPITULO II

O julgamento de Calabar

Ha, no fundo de nossa Historia, uma figura sombreada que péde Justiça. E' Domingos Fernandes Calabar. Traidor, ladrão, ignorante, covarde, desclassificado social, negro desprezivel, taes os qualificativos que lhe dá a incontida sabedoria official. Entre os maiores accusadores do mulato de Porto Calvo, dois se destacam: Francisco Adolfo de Varnhagen (Visconde de Porto Seguro) e Viriato Correa. Aquelle, brilhante histtoriador; este, famoso jornalista. As accusações destes dois illustres escriptores constituem o maior libello architectado contra Calabar. Porem, Calabar tem defesa. E não ha consciencia integra que seja capaz de condemnar um accusado sem ouvir sua defesa. Tiremos, pois, do recesso da historia patria essa figura aviltada, e apresentemo-la ao julgamento da consciencia nacional.

I)-Accusação pelo historiador Varnhagen

<< Lamentavel occorrencia veiu mudar a face dos acontecimentos, atiçar a guerra e prolongar a duração do dominio estranho. Referimo-nos á deserção, das fileiras dos nossos para as do inimigo, de Domingos Fernandes Calabar, natural de PortoCalvo. Consta, pelo testemunho de dois escriptores que conheceram pessoalmente o mesmo Calabar, e que deram seus depoimentos ante a posteridade, alguns annos (1) depois da morte do mesmo Calabar,

que a origem da deserção procedeu de temor do castigo, em virtude de grandes crimes commettidos.

Esses crimes, segundo uma das testemunhas, que foi nada menos que o sacerdote que ouviu o reu de confissão na hora da morte, foram grandes furtos, em virtude dos quaes o desertor receava ser perseguido pelo provedor André d'Almeida. Contra depoimentos tão explicitos, não nos é permitido, sem offender os principios do criterio historico, oppôr conjecturas, para, com mal entendida generosidade, pretender desculpar essa deserção, origem de tantas lagrimas para a patria. E' inquestionavel que, como militar, ajuramentado ás bandeiras, o Calabar foi perjuro, desertando dellas, e que, como subdito, abrindo o exemplo á deserção, e prestando serviços na guerra contra a sua patria e os seus concidadãos, foi ao mesmo tempo traidor. Ao effectuar a deserção, no dia 20 de abril de 1632, fel-o de um modo tão pouco justificavel aos proprios olhos do chefe contrario que, quando já lhe estava prestando valiosos serviços, o mesmo chefe desconfiava da fidelidade do novo transfuga e de officio (2) o tratava de negro (een em Neger) e com certo desprezo (dom Volek). E, poucos annos depois, o eloquente historiador hollandez (3) não duvidava declarar que no patibulo havia o mesmo Calabar expiado a sua infidelidade e deserção. - A rehabilitação de Calabar não seria mais justificavel do que a de qualquer official inferior que, por commetter alguma falta, ou por mera ambição, desertasse para o inimigo paraguayo na ultima guerra. >

Notas (1) O seu confessor na hora da morte, fr. Manuel Calado, doze annos depois; o donatario da Capitania, d'ahi a seis annos mais. (2) Officio de Weerdenburgh de 9 de maio de 1632. (3) Barlaeus, Rerum, etc., ed. de 1647, pag. 37.» (Varnhagen, Hollandezes no Brazil, Lisboa, 1872, paginas 83 e 84).

II) --Accusação pelo jornalista Viriato

« Em dias do mez passado, nesta columna, ao contar do ataque dos hollandezes ao forte de Cabedello, alludi ligeiramente á traição miseravel de Calabar aos seus companheiros da defesa da terra brasileira.

A expressão << miseravel » chocou alguns leitores. Tres cartas vieram-me ás mãos. A mais interessante das tres é a de um cavalheiro que se assigna Lima Bello e que, além de mostrar-se intelligente e gentil, revela-se de alguma maneira sabedor daquelle periodo vibrante da historia nacional.

Discute a figura de Calabar e conclue por guindal-a ás honras de um vulto de patriota. Foi por patriotismo que Calabar se passou para os hollandezes! A colonização flamenga trazia um grande surto de avanço para o Brasil; o Brasil só tinha a ganhar com a Hollanda e patriotas eram aquelles que, naquella immensa luta do seculo XVII, se collocassem ao lado dos batavos contra os portuguezes rotineiros e ambiciosos.

Essa noção da personalidade de Calabar não é nova. Muita tinta e muito papel se tem gasto para provar que o gesto do mulato alagoano, em collocar-se ao serviço dos hollandezes, foi um rasgo de intelligente patriotismo.

Está tudo errado.

Em primeiro logar, porque será muito difficil provar que a colonização flamenga era mais util ao Brasil que a portugueza. Pernambuco só teve, durante a occupação hollandeza, um periodo de fulgor o do governo de Nassau. Não deveu aquelle fulgor a um povo, mas a um homem.

Em segundo logar, porque a guerra contra os flamengos não era uma questão portugueza, era uma questão brasileira.

Portugal, naquella phase impressionante da nossa historia, bem pouca coisa podia fazer. Sob o jugo da Hespanha, minado pelo sentimento de independencia, cuidava de si. A resistencia contra os usurpadores do nosso territorio teve que ser feita pelos filhos da terra.

Não se diga que, pelo facto do Brasil ter menos de seculo e meio de descoberto, não estivessem o caracter nacional e o sentimento de nacionalismo perfeitamente firmados. O Brasil foi um dos paizes onde aquelle caracter se firmou mais rapidamente. Já em 1566, quando foi da expulsão dos francezes das aguas da Guanabara, o maior numero de heroes contou-se entre os mamelucos.

Na guerra contra a Hollanda já o sentimento de nacionalismo está perfeitamente delineado. Na resistencia e na expulsão apparecem as figuras maximas do patriotismo brasileiro: os Henrique Dias, os Camarão, os Vidal de Negreiros, os Mathias e Antonio de Albuquerque Maranhão, etc., todos filhos da terra, todos na suprema defesa do sólo nativo.

Calabar não preferiu a Hollanda por Portugal. Mas traiu os seus companheiros de armas, os seus irmãos de ideaes, brasileiros como elle, todos unidos contra a usurpação.

Os factos são claros.

Quando, em fevereiro de 1630, a esquadra hollandeza surgiu deante de Olinda, a cidade inteira tremeu apavorada. Não foram só os portuguezes que se viram na imminencia de perder o dominio de tão vastas terras e de tão rica capitania. Foram os brasileiros que se sentiram ameaçados na sua propria casa, e ameaçados por intrusos que já se tinham mostrado simples piratas no ataque á Bahia.

Passado o primeiro momento de panico, entregue Olinda ás forças de Weerdenburg, todos se unem. A indignação inflamma os peitos. A surpresa do ataque, a desegualdade da luta, o saque furioso da

soldadesca flamenga, congregaram a população expulsa.

O espirito era, no momento, profundamente catholico. E os hollandezes eram hereges. As scenas que se produzem na cidade saqueada são as mais chocantes para o sentimento religioso do povo. Os flamengos transformam as egrejas em quarteis, quebram os santos, profanam as reliquias sagradas. Em plena embriaguez, soldados andavam pelas ruas, em chuchadeira, vestidos de batinas e sobrepelizes que roubaram das sacristias dos templos. As casas ricas, as grandes lojas, as adégas, tudo foi varejado. Conta-se que a soldadesca se vestia com roupas das damas, outros empunhavam a vara das autoridades da justiça e saiam pelas ruas em grossa pandega macaqueando gestos e attitudes.

Tudo isso devia ter abalado profundamente o coração dos habitantes. A revolta era natural.

Não era o sentimento portuguez que estava offendido: eram os brios dos filhos da terra. Aquillo os feria mais de perto.

Mathias de Albuquerque, o governador portuguez, incita os animos e organiza a defesa. Não se póde dizer que, por ter sido Mathias o grande chefe no momento, a questão era portugueza. O que se precisava era de um chefe. Mathias era o governador; nada mais natural que a chefia lhe continuasse nas mãos.

O grito de resistencia é levado para o interior da capitania. Não ha um peito que não vibre, não ha um brio que se não accenda.

Em derredor de Mathias de Albuquerque congregam-se todos os braços brasileiros.

Organiza-se o Arraial de Bom Jesus, aquelle estupendo baluarte de heroismo épico que, durante cinco annos, sitiado, sitiando, sem roupa, sem viveres e quasi sem armas, resiste aos embates do formidavel poder de Hollanda.

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